domingo, 27 de maio de 2018

Deputado Estadual e foro "privilegiado"

O Cespe/UnB, em questão recente de prova aplicada no concurso para o cargo de Delegado de Polícia Civil do Estado do Maranhão, sobre a competência para julgamento de Deputado Estadual em caso de crime de homicídio, entendeu que órgão competente para julgamento seria o “tribunal do júri da comarca em que os crimes foram praticados”.

 Eis a questão:

QUESTÃO 70  Após desentendimento em jantar em sua residência, um deputado estadual esfaqueou um colega, que morreu no local. Para ocultar o ato criminoso, o parlamentar enterrou o corpo da vítima no quintal de sua residência. Após o indiciamento, o MP ofereceu denúncia contra o parlamentar. Nessa situação hipotética, a competência para julgar os crimes de homicídio e de ocultação de cadáver será do

A) tribunal de justiça e do juiz singular da justiça comum estadual, respectivamente.

B ) juiz singular da justiça comum estadual.

C) tribunal do júri da comarca em que os crimes foram praticados.

D) tribunal de justiça do estado em que o parlamentar exercer o seu mandato.

E) tribunal do júri e o do juiz singular da justiça comum estadual, respectivamente”.

Comentando sobre a questão, e sobre o tema, o Prof. Norberto Avena, cujo texto pode ser acessado em https://norbertoavena.com.br/competencia-para-julgamento-de-deputado-estadual-por-crime-doloso-contra-a-vida/,  assim se posicionou:

“O tema foi cobrado na prova objetiva do CONCURSO PARA DELEGADO DE POLÍCIA DO MARANHÃO (2018), realizada pelo CESPE. Narrou a questão: “Após desentendimento em jantar em sua residência, um deputado estadual esfaqueou um colega, que morreu no local. Para ocultar o ato criminoso, o parlamentar enterrou o corpo da vítima no quintal de sua residência. Após o indiciamento, o MP ofereceu denúncia contra o parlamentar. Nessa situação hipotética, a competência para julgar os crimes de homicídio e de ocultação de cadáver será do (A) tribunal de justiça e do juiz singular da justiça comum estadual, respectivamente. (B) juiz singular da justiça comum estadual. (C) tribunal do júri da comarca em que os crimes foram praticados. (D) tribunal de justiça do estado em que o parlamentar exercer o seu mandato. (E) tribunal do júri e o do juiz singular da justiça comum estadual, respectivamente.”

Pois bem, no gabarito oficial, apontou a Banca, como correta, a alternativa (C), que referia a competência do Tribunal do Júri para o julgamento do parlamentar estadual em relação a ambos os crimes.

Equivocado o gabarito. E para demonstrar isto, transcrevo, abaixo, excerto de meu livro PROCESSO PENAL, da Editora Método (Ed. 2018), tópico 9.2.2.7:

9.2.2.7   Prerrogativa de função e competência do Tribunal do Júri

[…]

Situação curiosa ocorre em relação aos deputados estaduais, que não têm prerrogativa de foro determinada pela Constituição Federal, mas sim pelas Constituições Estaduais. Logo, se um deputado estadual comete crime doloso contra a vida, a primeira impressão é a de que, em razão da Súmula Vinculante 45 do STF, deverá ele ser processado e julgado perante o Tribunal do Júri. Esse raciocínio, porém, é equivocado, porque o art. 27, § 1.º, da CF determina que aos deputados estaduais apliquem-se as regras da Constituição Federal sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas. Ora, ainda que esse dispositivo não estenda aos deputados estaduais as normas relativas à prerrogativa de função atinentes aos deputados federais, o STJ, interpretando-o, consolidou o entendimento de que, para os deputados estaduais não incidem os termos da mencionada súmula vinculante (STJ, HC 220.225/RJ, 5.ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 02.10.2013). Portanto, se cometerem eles crimes dolosos contra a vida, não estarão sujeitos ao Tribunal do Júri, mas sim a julgamento perante o Tribunal de Justiça do respectivo Estado.

[…]”

Súmula Vinculante  45: “A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição Estadual.”

Logo, correta, na questão 70 da prova em análise, a assertiva (D) tribunal de justiça do estado em que o parlamentar exercer o seu mandato”.

Os argumentos, como se verifica, são, ou eram, na linha de pensamento do Prof. Norberto Avena, sólidos. Contudo, a partir do julgamento do Supremo Tribunal na “QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL 937 RIO DE JANEIRO”, o tema, pensamos, ganhou novos contornos, e, ao que parece, esse novo entendimento já foi adotado pelo Cespe/UnB.

De fato, conforme conclusão do mencionado julgamento, o STF estabeleceu as seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”.

Ora, se o foro por prerrogativa de função, em se tratando de congressistas federais, aplica-se somente aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas, por certo que, nesse ponto, em havendo crime de homicídio (crimes contra a vida) por parte desses congressistas, e que não estejam relacionados ao exercício das suas funções, a competência será do Tribunal do Júri (juízo natural). Se, por outro lado, o crime de homicídio estiver relacionado, pela eventualidade, às funções do congressista, permanece, excepcionalmente, a competência do Supremo para o julgamento.

Quanto aos deputados estaduais, cediço que não há na Constituição Federal, de forma expressa, norma informando que deputados estaduais possuem, em se tratando de crimes contra a vida [homicídio], foro por prerrogativa de função e, assim, o “direito” de serem julgados perante o Tribunal de Justiça do respectivo Estado.

O Superior Tribunal de Justiça, contudo, havia fixado, em 2010, como se verifica pelo Informativo 457, e com base na teoria do paralelismo constitucional e adotando interpretação extensiva/ ampliativa  do artigo 27, parágrafo 1º, da Constituição Federal, entendimento no sentido de que aos deputados estaduais deveria ser garantido o mesmo tratamento dispensado aos federais, no caso, o de serem julgados, em se tratando de crimes contra a vida,  pelo Tribunal de Justiça, e não pelo Tribunal do Júri.

Veja-se:

COMPETÊNCIA. CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA. DEPUTADO ESTADUAL.

Cuida-se de conflito de competência cuja essência é saber a quem cabe julgar os crimes dolosos contra a vida quando praticados por deputado estadual, isto é, se a prerrogativa de função desses parlamentares está inserida na própria Constituição Federal ou apenas na Constituição do estado. A Seção, por maioria, entendeu que as constituições locais, ao estabelecer para os deputados estaduais idêntica garantia prevista para os congressistas, refletem a própria Constituição Federal, não se podendo, portanto, afirmar que a referida prerrogativa encontra-se prevista, exclusivamente, na Constituição estadual. Assim, deve prevalecer a teoria do paralelismo constitucional, referente à integração de várias categorias de princípios que atuam de forma conjunta, sem hierarquia, irradiando as diretrizes constitucionais para os demais diplomas legais do estado. Consignou-se que a adoção de um critério fundado na aplicação de regras simétricas reforça a relevância da função pública protegida pela norma do foro privativo. Ademais, a própria Carta da Republica institui, em seu art. 25, o princípio da simetria, dispondo que os estados organizam-se e se regem pelas constituições e leis que adotarem, observando-se, contudo, os princípios por ela adotados. Diante desses fundamentos, por maioria, conheceu-se do conflito e se declarou competente para o julgamento do feito o TJ. CC 105.227-TO, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/11/2010 .

O Supremo Tribunal Federal, a quem cabe, todos sabemos, dizer a “ última palavra” sobre sobre a interpretação mais adequado do texto constitucional, firmou entendimento no sentido de que normas que estabelecem prerrogativas [“privilégios”] não podem ser interpretadas extensivamente, mas, ao contrário, devem ser interpretadas restritivamente.

Ganha relevo, pois, passagem do voto condutor proferida pelo Ministro Roberto Barroso no julgado referido, em que se trouxe à reflexão o seguinte: “(….) possibilidade de se conferir interpretação restritiva às normas da Constituição de 1988 que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função, de modo a limitar tais competências jurisdicionais às acusações por crimes que tenham sido cometidos: (i) no cargo, i.e., após a diplomação do parlamentar ou, no caso de outras autoridades, após a investidura na posição que garanta o foro especial; e (ii) em razão do cargo, i.e., que guardem conexão direta ou digam respeito ao desempenho do mandato parlamentar ou de outro cargo ao qual a Constituição assegure o foro privilegiado”.

Ao final, conclui o Ministro Roberto Barroso que “ Os problemas e disfuncionalidades associados ao foro privilegiado podem e devem produzir modificações na interpretação constitucional. Assim, a fim de melhor compatibilizá-lo com os princípios constitucionais, bem como reduzir as disfunções produzidas, as normas da Constituição de 1988 que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função devem ser interpretadas restritivamente, aplicando-se apenas aos crimes que tenham sido praticados durante o exercício do cargo e em razão dele. Como resultado, se o ilícito imputado foi, por exemplo, praticado anteriormente à investidura no mandato de parlamentar federal, não se justifica a competência do STF. E, ainda que cometido após a investidura no mandato, se o crime não apresentar relação direta com as funções parlamentares, tampouco se pode reconhecer a prerrogativa de foro perante esta Corte”.

Essa interpretação, aliás, cabe destacar, não é nova, como se observa no seguinte julgado do Supremo do ano de 1999, por curioso, também em Questão de Ordem:

EMENTA: – DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. PROCESSO CRIMINAL CONTRA EX-DEPUTADO FEDERAL. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA. INEXISTÊNCIA DE FORO PRIVILEGIADO. COMPETÊNCIA DE JUÍZO DE 1º GRAU. NÃO MAIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CANCELAMENTO DA SÚMULA 394. 1. Interpretando ampliativamente normas da Constituição Federal de 1946 e das Leis nºs 1.079/50 e 3.528/59, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência, consolidada na Súmula 394, segunda a qual, “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. 2. A tese consubstanciada nessa Súmula não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, “b”, estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar “os membros do Congresso Nacional”, nos crimes comuns. Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art. 102, I, “b” e “c”). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato. Dir-se-á que a tese da Súmula 394 permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita pelo Tribunal. Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos. 3. Questão de Ordem suscitada pelo Relator, propondo cancelamento da Súmula 394 e o reconhecimento, no caso, da competência do Juízo de 1º grau para o processo e julgamento de ação penal contra ex-Deputado Federal. Acolhimento de ambas as propostas, por decisão unânime do Plenário. 4. Ressalva, também unânime, de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394, enquanto vigorou.
(Inq 687 QO, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 25/08/1999, DJ 09-11-2001 PP-00044 EMENT VOL-02051-02 PP-00217 RTJ VOL-00179-03 PP-00912)

Diante desse novo panorama, cremos que não há mais espaço para se defender que deputados estaduais possuem, em se tratando de crimes contra a vida praticados fora do exercício do cargo, foro por prerrogativa de função junto ao Tribunal de Justiça Estadual, pois é certo que, se fosse do desejo do constituinte, esse “benefício” teria sido previsto no corpo da Constituição e, se não o foi, não cabe ao intérprete fazê-lo, “privilégio”, deveras, ilegítimo e que não pode mais perdurar diante da mutação constitucional promovida pela QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL 937 RIO DE JANEIRO.

Em último caso, ainda que com esforço se pudesse admitir terem deputados estaduais ”prerrogativa” de julgamento perante Tribunal de Justiça, na questão do Cespe/UnB em deslinde o crime não foi praticado em razão do cargo, logo acompetência era, de fato, do tribunal do júri.

Deputado Estadual e foro "privilegiado"

O Cespe/UnB, em questão recente de prova aplicada no concurso para o cargo de Delegado de Polícia Civil do Estado do Maranhão, sobre a comp...